Raciocínio Jurídico - #1

By | maio 03, 2020 7 comments




A série RACIOCÍNIO JURÍDICO, inaugurada hoje, nasce de uma constatação que vai além do meio dos concursos: a dificuldade de muitos na elaboração de raciocínios jurídicos, isto é, na CONSTRUÇÃO de teses, ao invés da mera REPRODUÇÃO da lei, doutrina e jurisprudência eventualmente encontradas ou recordadas. Em provas subjetivas, orais e no cotidiano profissional, cada vez mais tem sido exigida a capacidade CRIATIVA de elaboração de respostas bem fundamentadas.

Com esse objetivo, buscarei trazer, em forma de questionamentos/maiêutica, assuntos que não têm, prima facie, uma resposta clara e inequívoca. Farei isso sem a pretensão de fornecer ou sugerir resposta sobre os temas lançados, senão a atividade perderia o sentido de ser. Quem quiser, sendo aprovado ou não, por razões de concurso ou cotidiano profissional, pensar sobre o assunto e/ou construir a resposta nos comentários, fique à vontade!

Como se sabe, a maiêutica é conhecido método socrático de, multiplicando as perguntas, induzir alguém a alcançar a sua própria estruturação do pensamento. 

Lembro que o raciocínio jurídico pode ser exigido de diferentes formas em provas e no cotidiano, como, por exemplo, diante: (i) da inexistência de resposta indiscutível prévia, tal como sucede na problematização sugerida, caso em que nem a consulta aos materiais tradicionais resolve a celeuma; (ii) do esquecimento e/ou da não localização da fonte do direito na prova/cotidiano; (iii) da necessidade de contextualização do tema e da fixação da relação lógico-argumentativa entre os parágrafos (do contrário o discurso seria apenas uma soma de frases soltas); (iv) do ato de subsumir/ponderar, já que uma regra, por mais esmiuçada que seja, necessita de sua concretude (fixando o dano moral, pleiteando/deferindo algo etc.). Kelsen, v.g., diz que a norma concreta, exatamente em razão de sua concretude, tem mais do que a norma geral. No mesmo sentido, a semiótica trabalha com o abismo gnoseologico entre indicadores ("elementos") e predicadores ("classes") e com a arbitrariedade nessa correlação/incidência. Com isso quero dizer que, em maior ou menor medida, o raciocínio jurídico será exigido e é importante desenvolvê-lo!
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7 comentários:

  1. a) A partir da ideia de dignidade da pessoa humana como princípio matriz do estado brasileiro, devendo sua influência incidir fortemente tanto na realidade institucional quão prática e social, pertinente considerar que a prestação de necessidades fundamentais de todo ser humano - como a vivência e existência gozando de boa saúde - deve ser encarada como prioridade dos gestores e representantes eleitos. Não é aceitável, a partir de ideais como igualdade e equidade, que as pessoas mais abastadas desfrutem de excelentes serviços de saúde enquanto os mais pobres fiquem à mingua. Isso pois, entre outras razões, uma vez que desde tempos longinquos as civilizações consentiram com o contrato social para que preservassem as suas propriedades e não tivessem que exercer alguama autotutela, é justo que o estado paute suas políticas orçamentárias no sentido de estabelecer a melhor dignidade possível para as camadas mais frágeis, em prol do verdadeiro ideal de civilização e, se necessário for, corresponsabilizando os detentores dos meios de produção e as pseudo elites na hipótese dessa ótica emergencial humanitária causar sequelas em outros setores de atuação governamental. b) A independência e harmonia entre os poderes é crucial para a manutenção do estado de direito. Ressalvando que, em um primeiro momento, o dispositivo em comento parece satisfazer apenas uma aplicação literal, analisando o texto constitucional sistematicamente, enaltecendo sobretudo a dignidade da pessoa humana, seria possível encarar o art. 167, I, da CF, como um postulado do que é desejável em situações ideais de "temperatura e pressão", ou mesmo uma norma de caráter pedagógico, voltada ao afastamento da gestão irresponsável. Nesse contexto, embora não seja típico e não deva se tornar regra, quando se tratar de questões altamente emergenciais, é possível pleitear judicialmente orçamentos primeiramente discricionários e, em última análise, sob o fundamento da proteção ao mínimo existencial, até extrapolar as previsões orçamentárias, determinando que haja a compensação naquilo que for dispensável ao exercício das instituições (certos benefícios, questões de gratificação e valorização, conforto e etc). c) Não, a melhor inteligência da norma é no sentido de que os entes deverão assegurar ao mínimo determinados recursos, ou seja, há vazão ao princípio do mínimo existencial, e não à reserva do possível.

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    1. Talvez fosse interessante trabalhar na letra A a progressividade dos direitos sociais e a vedação ao retrocesso. A EC 95 é tema que pode ser relacionado ao assunto também. Na letra B, sua resposta foi bem construída, à luz da ponderação de interesses. É possível falar também das escolhas trágicas e seus limites. Na letra C, é interessante (até para demonstrar maior conhecimento) falar em quais condições incide a reserva do possível.

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  2. Perfeito, professor. Obrigado pelo feedback!

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  3. a) A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) estabelece como competência comum dos entes federativas cuidar da saúde pública (art. 23, II, CRFB/88) e, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), essa responsabilidade é solidária. Nessa perspectiva, é de se defender que a responsabilidade é comum, mas diferenciada, pois se deve levar em consideração o próprio desenho federativo criado pela Constituição de 1988, a qual concentrou poderes e recursos na União, criando uma federalismo assimétrico. Nesse sentido, cita-se como prova a própria existência de limites mínimos diferenciados que União, Estados e Municípios devem aplicar nas ações e serviços públicos de saúde. Nada obstante, ressalvadas situações peculiares, até mesmo pelo caráter comum e solidário da obrigação, bem como a urgência das demandas sanitárias e a confusa divisão de atribuições, deve o cidadão poder escolher contra qual ente federativo demandar e, somente após a concessão do bem da vida pleiteado, o ente federativo buscar em eventual ação regressiva ressarcimento pelo cumprimento de obrigação alheia. Pensar de forma diversa seria negar o caráter comum e solidário da obrigação e impor trabalho hercúleo ao cidadão, o qual em momento de debilidade teria sobre seus ombros toda uma intricada burocracia e um emaranhado de normas jurídicas.
    b) Um direito é uma metonímia para um dever de alguém, que pode ser outra pessoa, um ente jurídico ou mesmo o próprio titular do “direito” aventado. Assim, todo direito possui custos e consequências. Nesse sentido, na obra “O custo dos direitos”, o qual serviu de norte para o estabelecimento de políticas na era Obama, é mostrado que mesmo os direitos “individuais” não somente exigiam custos financeiros pelo Estado como eram o que mais exigiam porque, por exemplo, para se garantir a liberdade há de existir todo um aparato policial e judiciário para impedir que alguém se imponha sobre outrem. Assim também é com o direito à saúde. Desse modo, o chamado “direito à saúde” (em que pese “saúde” ser um conceito ainda discutido na ciência médica, entre outras), em substância, significa o direito aos meios que possibilitem manter ou melhorar a saúde, o que implica inexoravelmente despesas. Seria muito fácil dispor que todos têm direito a serem saldáveis ou mesmo a terem o melhor tratamento de saúde do mundo, mas isso padeceria de falta de viabilidade e seria, no fim, uma mera exortação. Sendo o orçamento uma peça que prevê as receitas e as despesas, ele deve ser sério e realista, sob pena de gerar inflação, ou seja, um descompasso entre o formal e o real. Esse foi o próprio escopo da Emenda Constitucional nº 95 e o chamado “teto de gastos públicos”. Tendo em vista que toda decisão judicial sobre saúde implicará custos, deve o orçamento já prever dotação para o cumprimento dessas determinações, com fulcro na harmonia entre os poderes. Contudo, na prática, certas vezes o orçamento não prevê ou prevê de forma insuficiente, colocando o gestor público em uma situação complicada de ou ter de descumprir a determinação judicial ou cumpri-la e, porventura, desobedecer diversos diplomas normativos, inclusive criminais. Assim, é de se observar que as decisões judiciais implicarão custos que devem estar previstos no orçamento, mas que se não estiverem, em realidade, comprometerão o orçamento do ano seguinte. Nada obstante, pela harmonia entre os poderes e mecanismos de freios e contrapesos, cabe aos entes federativos usar dos mecanismos legais para buscar uma reversão da decisão judicial e aos juízes estarem atentos aos múltiplos impactos de suas decisões. Assim, decisões judicias não estão submetidas, ao menos formalmente, a vedação do artigo 167, I, da CRFB/88.

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  4. c) Não pode, pois o artigo 198, §2º, da CRFB/88 estabelece um patamar mínimo de aplicação de recursos públicos na área da saúde e não uma autorização constitucional para descumprir o mínimo existencial. Com efeito, o mínimo existencial é o conjunto de condições elementares para a existência humana, o que pode variar conforme o autor e o critério, mas para Ricardo Lobo Torres seria ao menos não dormir ao relento e, no âmbito educacional, ser alfabetizado. O mínimo existencial também se aplica ao direito a saúde, com os problemas definitórios já mencionados. Assim, para Marcelo Neves, sob pena de levar a absurdos, o mínimo existencial no âmbito da saúde significa o acesso a um patamar mínimo de atendimento ambulatorial e hospitalar, não uma autorização para exigir do Estado que se mantenha alguém saudável ou vivo a qualquer custo, sobretudo em países com severas dificuldades financeiras como o Brasil. Como contraponto ao mínimo existência surge a reserva do possível, a qual reconhece que as necessidades são ilimitadas, ao passo que os recursos são limitados, de modo que o Estado somente seria obrigado a agir dentro de sua capacidade, dentro do possível. Assim, defende limites a justiciabilidade do direito a saúde, nos quais se encontram limites jurídicos (separação dos poderes, reserva orçamentária, repartição de competências e a própria existência de direitos individuais, já que a concessão de tratamento para um indivíduo pode ferir o direito dos outros indivíduos que estão na fila de espera), fáticos (escassez de recursos) e metodológicos (o que seria o direito a saúde e até que ponto seria possível fazer exigências). Nada obstante, surgem como correntes favoráveis ao mínimo existencial a teoria liberal de que nada pode se sobrepor ao atendimento das necessidades vitais básicas do indivíduo; teoria democrática, que entende os direitos fundamentais como condição de participação democrática e o cumprimento dos direitos individuais e sociais como fatores essenciais para uma democracia substantiva; teoria da necessidade, a qual, embasada no princípio da subsidiariedade, defende que o Estado deve agir de forma subsidiária ao próprio indivíduo, seja para atender ao indivíduo necessitado ou para realizar prestações estatais exclusivas. Ante o exposto, o artigo 198, §2º, CRFB/88 não é um salvo-conduto para o Estado descumprir sua missão.

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    1. Parabéns pela resposta! Enfrente pontos relevantes (disciplina constitucional do assunto), com bom português, e tem interdisciplinariedade (citando, por ex, Marcelo Neves e a obra de Sunstein). Eu optaria também por esmiuçar mais a questão da despesa pública e sua regularidade, já que a letra B traz essa questão de forma direta. Especificamente sobre o assunto apenas foi dito que, "formalmente", o Judiciário não se submete ao inciso mencionado.

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  5. Muito obrigado pelas dicas e pelo site, professor. Na hora, como não sabia o que responder além do "formalmente", apenas pensei que se fosse uma subjetiva deveria apostar em um posicionamento, mas depois do seu comentário entendi que poderia ter falado dos requisitos das despesas públicas e sobre créditos adicionais (suplementares, etc). Muito obrigado.

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