O tempo dos concursos - Por Gabriela Martins Rodrigues

By | maio 30, 2020 Leave a Comment


Uma inquietação silenciosa dá azo a dúvidas que, na verdade, são um grito de desespero: "estou velho(a) para ser aprovado(a)?". É claro que quem pergunta sabe que em seu edital não há limite de idade. A pessoa sabe muito bem disso. Também sabe que outros mais velhos já passaram! A questão é que ela, em sua singularidade, passa a questionar o tempo. Mas... quanto tempo temos? Quanto tempo devemos doar a um projeto? Qual o tempo de desistir? Ou todos "que não têm outra opção senão passar" vão... passar? São questões singelas, existenciais, trabalhadas com maestria por Gabriela. Para quem não se lembra, a Gabriela escreveu sua trajetória aqui uma vez em um dos textos mais acessados: "sobre os limites que não se pode ver". O texto de hoje é outro que já nasce clássico: quanto tempo o tempo tem?! 

Quando pequena, minha mãe por vezes lia um livro de trava línguas antes de me colocar pra dormir . Dentre eles, eu tinha um preferido: “o tempo perguntou ao tempo: quanto tempo o tempo tem? O tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem”.
A relação do mundo dos concursos públicos com o tempo sempre me parecia aflitiva e sufocante. O tempo de prova. O tempo de estudo. O tempo que me falta pra poder chegar até a posse.
Ao contrário do tempo das objetivas, das páginas, dos cursos  e viagens, o tempo da vida não para. Filhos nascem e crescem. Relacionamentos se perdem. Avós envelhecem. Natais e páscoas se celebram e a vida se faz
E se eu perdi tempo? E se meu tempo de concursos já passou? E se está tarde demais pra tentar? Pra recomeçar?
Isso muito me afligia na tentativa louca de descobrir “quanto tempo o tempo tem”, buscando não me perder de vez nesse processo de estudos que me parecia sem fim.
No texto de Eclesiastes 3:1 há uma citação que muito me acalmou nesse processo: “tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.”
O período de concursos é um tempo que requer muita honestidade consigo e com a vida. Tudo tem um tempo determinado. Ponto. Isso é fato. Há tempo de gestar o sonho e a tempo de parir. Mas a gestação que se prorroga alem do “tempo” ou que vem depois do prazo pode não ser mais bem vinda. Ou pode mudar tudo e refazer a vida de formas nunca antes imaginadas.
Como distinguir? Como saber se é tempo de prosseguir ou tempo de deixar de seguir? Se é tempo de tentar ou tempo de aceitar a forma como a vida se fez?
O mundo dos concursos, em especial o meio mercadológico que o envolve, pode ser bem cruel. Por vezes vende a esperança de que sempre há tempo e que desistir ou se conformar não é uma opção. Com isso, mantém prisioneiros frustrados, endivida famílias e paralisa vidas em seguidas reprovações e renúncias.
Então o certo seria desistir? Também vejo que nem sempre é a solução . 
É preciso ser honesto consigo. Saber de verdade o que se busca e o porquê se busca. 
Um cargo público não traz de volta “a família amada” e nem refaz os laços que a distância desfez. E, de posse dele, a frustração por ter insistido em um status que nem de fato se queria, pode trazer um sabor amargo de uma vitória sem brilho, sem afeto, sem porquê.
Quanto tempo o tempo tem?
Acho que cada um deve refletir no tempo de sua vida e nos motivos que os levam a persistir num determinado caminho. Acima de tudo, acredito que a frustração se agrava quando apenas nos martirizamos no processo da conquista do cargo, sem dar atenção à vida que não para pra que eu busque a minha toga.
Se pudesse dar um conselho quanto a esse debate seria: não penhore a vida pra atender ao tempo que você acredita ter perdido. Tenha sabedoria nas escolhas trágicas a serem feitas. O almoço de Páscoa que você não comparece pra revisar a matéria de um concurso cujo edital nem saiu pode ser o último que aquela avó estava pra oferecer sua famosa torta de limão. 
Saiba que você pode passar a vida tentando e não conquistar o cargo que queira  ocupar. Isso é triste, mas é um fato. Um fato tão real quanto a conquista diária de muitos . E isso quer dizer que perdeu-se tempo? Isso quer dizer que foi em vão?
Depende.
Depende de quanto tempo esse tempo tem. 
Quanto tempo de saudades, de sonhos possíveis, de felicidades concretas e aprendizados. 
Aceitar o que se tem quando essa é a única realidade possível não é uma derrota. Pelo contrário, demanda uma coragem honesta, real e por vezes sofrida em silêncio.
É preciso saber defender a si mesmo e a sua sanidade. Não compre qualquer esperança e nem aceite como final qualquer derrota. Aprenda a interpretar quanto tempo o seu tempo tem. E aproveite a jornada pois é isso que faz tudo valer a pena.

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