Gatilhos, prática deliberada e flow - Por Raphael Silva e Castro

By | abril 18, 2020 Leave a Comment



Denso, técnico e inspirador! Raphael, Procurador da Fazenda Nacional e aprovado para juiz do TJSP 188, escreve certamente um dos melhores textos sobre concursos públicos! Vale a pena ler com calma, estando ou não estudando para concursos, porque ele diz respeito a algo que se refere a nós mesmos: o “estado de flow”. De certa maneira, me lembrou muito a ideia do Clovis de Barros Carvalho, famoso filósofo brasileiro, no sentido de que a felicidade é querer fazer que um instante não acabe... que ele dure para sempre. Seria, pois, um fluxo, algo além da prática deliberada que nos levou até aquele momento. E aí: o que acharam do “estado de flow”? A partir das ideias, em que estado você se encontra em relação aos estudos? 


Eu penso que o mais notável que possa haver numa conversa sobre estudos para os concursos públicos é a ideia chave do protagonismo do estudante na condução da sua preparação. A virtude está na perspectiva emancipadora de sermos senhores de nós mesmos, no sentido do aforismo socrático do conheça-te a ti próprio. Como a vida não vem com manual de instruções, a melhor metódica parece-me realmente ser esta, logo, a recomendação a seguir é encher-se de confiança e se jogar!

Ao se jogar, no entanto, sói abrir-se uma angústia diante dos múltiplos caminhos e daí advém a tentação de se despir da autorresponsabilidade de ser o treinador ou o condutor de si próprio e se deixar levar por alguma receita prescrita por algum guru, mentor, coach ou epíteto que o valha para servir de eufemismo a esta autoalienação. Periga o amigo concurseiro deparar com um paradoxo, na medida em que vai buscar alguma referência e, sendo honesta esta referência, muito provavelmente lhe remeterá de volta ao lugar de onde não deveria ter partido. Só então você realiza que o “se joga” não se refere a um destino alhures, mas sim se jogar para dentro de si. Não há saída, a não ser entrar dentro de si. Estudar, portanto, é um encontro consigo próprio que permite se conhecer. O “se joga” refere-se ao caminhar sem caminho prévio. Refere-se ao fazer do caminho.

Percebo essa tônica no debate e nas reflexões que encontramos aqui no perfil do Júlio, a propósito uma das melhores referências do habitat virtual do concurseiro! Seu treinamento de prova oral, não por acaso, faz mostrar ao candidato o quanto ele já é capaz, antes mesmo de cursar o curso, de vencer o desafio que se avizinha na arguição oral. Não há contradição. Sim, devemos buscar a chave da evolução em nós mesmos, mas isso não implica se fechar totalmente, uma vez que a conversa saudável permite ver na experiência do outro o que pode ser útil para a minha. Alguém na filosofia já nos advertiu que somos humanos e nada do que é humano nos é estranho. Logo, podemos trilhar o caminho juntos, mas cada qual há de assumir a responsabilidade de dar os seus próprios passos. Montar nas costas de alguém não te leva a lugar algum, simplesmente porque não é caminhada.



Nesta linha de ideias, quero enfatizar que você não deve buscar, nem precisa, de uma pílula de NZT-48, a droga que o protagonista do filme “Sem Limites” toma para se alçar num outro patamar de excelência mental sem qualquer esforço. Mas você pode subir nos ombros de gigantes e, ao pé do ouvido deles, encetar uma conversa interessante e, de um novo ponto de vista, enxergar lonjuras.

Existem 3 psicólogos, estudiosos da mente humana, que travaram uma conversa da qual se pode tirar enorme proveito na saga em busca de evolução nos estudos. Os livros proporcionam esta conversa com quem não está presente, fisicamente ou online. No livro “Garra: o poder da paixão e da perseverança”, Angela Duckworth narra o encontro que promoveu entre Anders Ericsson e Mihaly Csikszentmihalyi. Como a conversa da qual você tomará parte é mental, não precisa ter receio de errar a pronúncia do sobrenome de um dos interlocutores!

Duckworth estuda o papel decisivo da garra e a força que ela tem na busca de objetivos. Ela nos introduz a ideia desenvolvida por Ericsson em torno da prática deliberada e sua interação com a contribuição de Mihaly acerca do estado de flow.

O flow, ou fluxo, é a experiência de concentração em nível ótimo, uma atenção máxima, apta a nos permitir fluir numa atuação em altos níveis de dificuldade de forma tão espontânea a parecer não estar dispendendo tamanha esforço. Um estado de êxtase, assombramento ou deslumbramento com a própria performance. Tudo funcionando no automático, numa enxurrada que você quer que continue, porque percebe que está indo muito bem no que faz e rompendo limites. É muito comumente relatada por alguns artistas no seu processo criativo. É como Eddie Morra sob os efeitos do NZT-48, verdadeiramente sem limites.

Quem dirá que uma resposta discursiva bem construída não é uma espécie de arte ou conserva algo de artesanal? Sentença, a propósito, vem de “sentire”. Opa! Acabamos de referir a 2 fases do concurso da magistratura! E quanto à primeira fase? Por acaso você já experimentou, ao fazer questões objetivas à exaustão, o ingresso numa total imersão a ponto de identificar o erro das alternativas já ao bater o olho na redação da assertiva mal formulada e, por isso mesmo, errada? Um ritmo hipnótico até!

Em “Rápido e Devagar”, Daniel Kahneman chega a dizer que quando em fluxo as interrupções não são bem-vindas. Relembra sua infância. Chorava quando a mãe o retirava dos brinquedos para levá-lo ao parque, e novamente chorava quando era retirado do balanço ou do escorregador. Ou seja, a dor estava na transição, na quebra da inércia de forma abrupta, o que era um sinal de que ele estava se divertindo. Assim se identifica o flow.

Você já teve vontade de se enclausurar numa cápsula inviolável do estudo interminável, tamanho o deleite numa leitura? Isto é o flow! Você fica retido na monotarefa sem experimentar o tédio e a tentação do desvio. Os pensamentos intrusos se silenciam e você ganha uma clareza e organização mentais deliciosas! Reina a serenidade! Fluir é o que todos querem! Um sonho do concurseiro! Como atingi-lo?

A proposta é partirmos de gatilhos para romper o estado de inércia e avançarmos na prática deliberada para, quiçá, atingirmos o flow. Quiçá? Calma! Com as condições ideais de temperatura e pressão, dando tempo ao tempo, com a prática deliberada o flow começa a ficar recorrente.

Os gatilhos são os rituais que suavizam a transição da inércia (a atividade anterior) para a prática deliberada. O Júlio e a Chaiane já trataram disso aqui!

Já a prática deliberada pode ser resumida num quadripé, que aqui segue adaptado à moda concurseira:

1) uma meta ambiciosa claramente definida: passar no concurso é vago demais, prefira atingir o ponto de corte necessário;

2) concentração e dedicação totais: ao modo monotarefa, por meio da limpeza da mente anotando as pendências da vida prática e do trabalho num bloco de notas para delas se ocupar aos seus devidos tempos. Assim evita-se que preocupações desnecessárias invadam um tempo que não é delas, mas somente dos estudos;

3) feedback imediato e informativo (o Abhner também já abordou esse ponto aqui!): com um sistema de checagem de desempenho por matérias via estatística e classificação dos erros em desconhecimento da lei (DL), da doutrina (DD), da jurisprudência (DJ), falha de interpretação do enunciado da questão (FI) e falta de atenção (FA);

4) repetição com reflexão e aprimoramento: com foco nos pontos fracos diagnosticados na etapa 3, p. ex., ler mais doutrina de penal se teve mais DD em penal, ler mais lei seca de civil se teve mais DL em civil.

Repita o ciclo! As etapas 1 e 2 são pré-requisitos de ação. A 3 é diagnóstico que traça a 4, que é prognóstico. Com o hábito de praticar à mesma hora e no mesmo lugar todos os dias, você nem precisará pensar em começar. Você vai e faz. Eis que surge a disciplina que você pensava que não tinha! E, um belo dia, o fluxo se manifesta naturalmente!

A prática deliberada é planejada com cuidado, ao passo que o fluxo é espontâneo. Neste, a sua dificuldade e competência já se equilibram, por isso você flui de forma a parecer sem esforço, porém, só porque você insistiu e foi frequente naquela, na qual as suas dificuldades ainda superavam a sua técnica, as suas habilidades. A pesquisa de Duckworth revelou que as pessoas com maior grau de garra diziam ter vivenciado mais fluxo, justamente porque se empregaram aferradamente na prática deliberada. A prática deliberada, portanto, é um comportamento, ao passo que o fluxo é uma experiência.

Da conversa entre Ericsson e Mihaly, podemos concluir, com a ajuda de Duckworth, que o primeiro nos fala sobre o que os notáveis fazem e o segundo nos fala o que os notáveis sentem!

Quem atinge resultados compensadores e notáveis, ao se desempenharem, parecem sofrer ou parecem fluir? Repare no Cristiano Ronaldo! Repare na aula de um professor “genial”! Os excelentes não fazem parecer tudo ser mais fácil para eles?!

O objetivo é chegar a experimentar o fluxo em casa, por estudo ativo, identificar, repetir, aprender até mesmo a induzir ou estar mais propenso à experiência, e, então, fazer a prova do concurso no “dia D” em estado de fluxo. Você está preparado para a prova, porque fez o trabalho duro, só precisa estar num bom dia para fazer o seu melhor, que aflorará no fluxo (atenção, prazer e desempenho). Então você se torna o predador da prova, a águia, e não a presa dela, a galinha, como na imagem de Leonardo Boff.

E sabe qual o melhor de tudo isso? Foi você quem fez esse bem a você! Sem muletas psicológicas, como coachs, e sem drogas estimulantes, como NZT-48. Só um cafezinho de vez em quando... porque não faz mal a ninguém e nos enlaça numa conversa entre um intervalo e outro de estudos!

Faz sentido ou não?

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